A Vocação de João Batista

São só a avareza, a inveja e a soberba os fogos que mantêm o ânimo aceso.” — Dante Alighieri

Desde tempos imemoriais, a humanidade persegue o portador das verdades inconvenientes. A personalidade malsã reluta em aceitar a consciência de tal modo que, em vez de analisar fatos antigos à luz duma nova verdade, distanciando-se do erro, prefere apegar-se a ele como a uma tábua de salvação. Isolado e incapaz de compreender o que lhe é dito, o indivíduo entra num estado de negação, fechado à realidade enquanto a ataca, qual um animal acuado que morde a mão de quem lhe oferece ajuda.

Os profetas do Antigo Testamento eram capazes de tapar as bocas dos leões e extinguir a violência do fogo quando o povo lhes dava ouvidos. Quando ainda não era tempo para que se entendesse o teor da mensagem, aqueles mesmos profetas eram apedrejados, serrados ao meio ou mortos pela espada. De nada adianta que o povo tenha olhos para ver e boca para falar, se não possui ouvidos para escutar. Foi assim que João Batista cumpriu sua vocação sob o fio do machado.

Não há nada de novo nestas palavras; o que há de novo talvez seja meu conhecimento sobre esses fatos, vividos na pele por quase uma década de vida literária no Brasil (duma literatura, por sinal, inexistente). Pensei — e aqui a linha entre ingenuidade e estupidez torna-se tênue — que talvez os escritores brasileiros estivessem prontos para dar um novo passo em direção à Beleza, que os leitores estivessem sedentos por uma Literatura superior (ah, palavra execrada pela modernidade!), mas encontrei apenas um ninho de enganos.

Não hei de falar nas calúnias, difamações e perseguições sofridas por mim, pois o leitor que me acompanha deve estar cansado de ouvi-las ou mesmo de testemunhá-las, tanto quanto eu estou de contá-las. É que, no Brasil, quando um homem conta sua própria história factualmente, elencando as injustiças e infortúnios sofridos, numa forma coesa e com nexo causal, ele sempre tem de ouvir insinuações de que deve ter feito por merecer, ou que é louco. Sócrates mereceu a cicuta, e Cristo, a cruz.

Em Crítica Literária, cheguei à conclusão de que, nas presentes circunstâncias, não é possível chegar a debate algum: os leitores brasileiros são os mais ignorantes, sentimentais e idiotizados da face da terra; e pior, soberbos, por acharem que leitura lhes confere status social. E, quando esse mau leitor chega a seu ápice, lendo livros aleatoriamente, sem ordem ou sem formação intelectual alguma, ele transcende ao papel de palpiteiro online, dando seus juízos malformados e pseudoideias para quem estiver disposto a gostar de seus trejeitos e cacoetes. Todos têm uma opinião válida para dar, sem o mínimo estudo (esse mínimo sendo algo entre quatro e cinco anos de estudo sistemático, formal ou não, mais ou o tempo de um bacharelado).

Sobre os supostos críticos literários, nem se fala: não entendem de filosofia básica e ainda cospem nas bases artísticas (que, por óbvio, só podem ser aprendidas com os próprios artistas); não dominam nem mesmo o básico da teoria literária que julgam entender. Isso pode ser constatado com o mero fato de “crítico” algum, no cenário atual, conseguir definir adequadamente seu objeto de estudo em menos de duas linhas. Em outras palavras, saber delimitar o que é literatura e o que não é, para fins de estudo, dizer o que é arte de forma simples, sem rodeios ou pseudoerudição, com objetividade e assertividade. Não encontrei, no Brasil, nenhum crítico nem artista verdadeiro, nenhum homem de juízo superior; superior a si mesmo, supra histórico e geográfico, atemporal, de todos os lugares e lugar nenhum, em síntese, um homem de personalidade universal.

Não digo nada disso em tom de ofensa, apenas de constatação. Basta olhar o que há de mais lido: subliteratura, fantasias e devaneios que jamais tocam em temas reais do drama da existência humana. Na crítica, as maiores canalhices relativistas ou sentimentalismos subjetivistas.

Quanto a mim, na Crítica e Teoria Literária, tentei reunir um corpo de conhecimento teórico e filosófico que permitisse um juízo objetivo, o tanto quanto fosse possível, das obras estudadas, dando unidade às análises, de modo que as críticas não fossem a somatória arbitrária da marchetaria particular que é a alma de cada crítico. Propus um exame minucioso, reunificando objetividade e subjetividade, razão e emoção, expandindo a consciência crítica para que pudesse haver uma dialética entre o entendimento das obras particulares em face à tradição universal. É preciso que se diga: esse não é um empreendimento novo, nem minhas ideias são “originais” (pobre do homem que se crê inventor da roda). Me baseei em inúmeros teóricos, filósofos e escritores que vieram muito antes de mim, e que foram muitíssimo mais capacitados que eu, mas fui tomado por invencionista, criador de modas. A classe dita letrada não estava pronta para tal discussão.

A título de exemplo, eu soube, por intermédio de um aluno, que, quando eu fui chamado para compor o júri de um prêmio nacional renomado, após eu receber e aceitar publicamente o convite, a comissão organizadora sofreu pressões para me retirarem da banca de jurados; e, pelo que eu soube, quase o fizeram. O que teria motivado uma reação tão drástica? Por acaso tive uma vida dissoluta, cheia de desvios e imoralidades? Cometi algum crime? Feri a vida, liberdade ou propriedade de alguém? Não. Aqueles que pediram minha remoção da banca foram motivados por minhas “opiniões controversas”, que desagradaram “gente influente”. Somente no Brasil, um crítico literário pode ser repreendido e boicotado por fazer crítica, ter opiniões sólidas; episteme, não doxa.

Paguei um preço caro por dizer certas verdades e tive minha obra literária comprometida, pois meus escritos foram lidos e plagiados, mas jamais divulgados, meus originais foram relegados ao mais absoluto silêncio dos editores após convites de publicação, fui “desconvidado” a palestrar em eventos; tudo isso por contas dos fogos que mantêm os ânimos desta terra acesos.

Após quase uma década de vida literária e atuação pública, entendi que meus ensaios e aulas não passam de palha para fogo: o que interessa ao intelectual é sua consciência, e somente sua consciência. Por outro lado, sou artista; e ao artista basta a criação. Minha ausência da internet se dá por dedicação à minha obra ficcional e à minha família. Se eu for lido ou não, isso é irrelevante: o verdadeiro artista cria no coração de Deus, não na memória dos homens, louvor de glórias fugazes. É evidente que nenhum escritor escreve para si mesmo; desejo apenas o êxito acima de tudo, pois o sucesso são cinzas passageiras.

Eventualmente devo publicar, além dos romances e contos, livros com meus cursos e escritos não ficcionais. Talvez eu nem mesmo faça isso em português. Falei e, justamente por isso, tentaram me calar; digo apenas a que sanha autoritária deste país não começa nas altas cortes, mas no seio do próprio povo. Parto para meu desterro — e com ele o exílio de minha língua materna —, pois prefiro-o a ter de me submeter à degradação moral, intelectual e estética que é o Brasil. Não sinto mais vontade, nem necessidade, de dizer coisa alguma para quem quer que seja; Deus finalmente concedeu-me o dom da resignação.

Se, em Cafarnaum, Jesus não conseguiu operar milagres e retirou-se amaldiçoando a cidade, o que se dirá de um mero escritor no Brasil? Somente em sua pátria e sua família um intelectual é desprezado.

Talvez não seja o momento para que certas ideias saiam de um círculo restrito de pessoas e ganhem público. Na realidade, talvez nunca o seja. O que sei é apenas isto: não tenho vocação para João Batista e minha cabeça jamais servirá de adorno para as baixelas de prata desses filhos de Herodes, que insistem em decapitar os anunciadores de uma verdade superior.

Paulo Cantarelli

Algum lugar do mundo, 11/01/24

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